Friedrich N I E T Z S C H E
PRUSSIANO (Röcken, Reino da Prússia, 15 de outubro de 1844 — Weimar, Império Alemão, 25 de agosto de 1900)
PRUSSIANO (Röcken, Reino da Prússia, 15 de outubro de 1844 — Weimar, Império Alemão, 25 de agosto de 1900)
Na filosofia de Friedrich Nietzsche, encontra-se um elemento que, talvez, seja o mais polêmico de todos: a crítica à moral cristã.
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, cidade do então Reino da Prússia, em 1844. Descendente de pastores luteranos, o pensador contemporâneo dedicou-se aos estudos de teologia desde a sua juventude. Em sua adolescência, porém, ele começou a encontrar contradições nos escritos cristãos e passou, pouco a pouco, a questionar a religião em que foi doutrinado.
Na década de 1860, Nietzsche concluiu seus estudos de filologia clássica na Universidade de Leipzig, voltando-se para a investigação da cultura e língua grega. Nesse período, o filósofo foi fortemente influenciado pelo professor Friedrich Ritschl e pela leitura do livro O Mundo Como Vontade e Representação, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Apesar da formação em filologia, Nietzsche aprofundou cada vez mais seus estudos em filosofia grega e em Schopenhauer, fato que o fez ser reconhecido pela posteridade como filósofo.
Em 1868, Nietzsche tornou-se professor de filologia da Universidade da Basileia e, em 1872, publicou o seu primeiro livro, intitulado O Nascimento da Tragédia, no qual analisou a cultura e a vida dos gregos clássicos a partir das tragédias produzidas no período. Seus estudos também apontaram para a vida moral daquele povo e o modo como eles encaravam a religião, as vontades e desejos corpóreos e a diferenciação entre as pessoas.
A MORAL
Em seus escritos do fim da década de 1870 e dos anos 1880, o filósofo passou a investigar, minuciosamente, a moral. Segundo o pensador, a história do ocidente deparou-se com um fenômeno bastante peculiar e que influenciou toda a posteridade: o advento do cristianismo. A partir do momento em que a religião cristã se institucionalizou, passou a vigorar um modo de viver e de criar valores morais voltado para os ensinamentos cristãos.
É importante ressaltar que Nietzsche, em momento algum, tenha criticado Jesus Cristo, mas sim o que fizeram do cristianismo a partir do momento em que a vida de Jesus se torna um fundamento para uma religião, ou seja, a partir dos apóstolos Paulo, Pedro e da fundação da Igreja Católica. Nietzsche afirmava que o cristianismo, imperioso a partir da Idade Média, impôs uma inversão de valores morais que culminaria no enfraquecimento do ser humano por ser a negação dos impulsos morais que falam mais alto em qualquer animal. Afirmações polêmicas como “o cristianismo é a revolta de tudo o que rasteja pelo chão contra aquilo que tem altura”1 condensam o pensamento nietzschiano.
A MORAL GREGA, A MORAL CRISTÃ E A INVERSÃO DE VALORES MORAIS
Para o filósofo, a vida humana não se dissocia da vida natural, o que requer o abandono da ideia iniciada por Sócrates de que o ser humano, por ser racional, diferencia-se completamente dos demais animais e da natureza. Para Nietzsche, esse modo de encarar a vida é negador da própria vida, pois retira do ser humano a sua força que reside justamente nos impulsos e nas paixões naturais. Os gregos antigos eram capazes de relacionar com uma religião que os permitia conviver com os impulsos naturais, o que refletia no seu modo de criar valores morais.
Para os gregos antigos, a força e a fraqueza eram os fatores constituintes da bondade e da ruindade dos homens: o forte era bom, e ser fraco era ruim. Ter altivez e coragem eram características dos homens considerados bons, e ser submisso e humilde eram características dos homens considerados ruins. Esse modo de valorar reflete o tipo de sociedade grega: uma sociedade aristocrática. Nietzsche não defendia o retorno de uma aristocracia e, tampouco, que o modo de valorar grego voltasse à tona. Ele apenas apresentava, como recurso didático, a moral grega para mostrar que o ser humano já foi capaz de uma moral fortalecedora.
A moral cristã opera, segundo o filósofo, uma completa inversão desses valores antigos: o que era considerado bom (forte, corajoso, altivo e contestador) passou a ser considerado característica do homem mau. O que era considerado ruim (submissão, humildade e fraqueza) passou a ser considerado característica do homem bom. Esse movimento não só inverte os valores, como também troca o termo “ruim” por “mau”. Segundo Nietzsche, essa inversão de valores se torna regra para a sociedade contemporânea e é capaz, a partir do momento em que se tornou a regra moral para o ocidente, de castrar a natureza humana e enfraquecer as pessoas, pois ela tira a centralidade da vida na própria vida (natural, fisiológica e biológica) e concentra-se em uma vida voltada para o além (a promessa cristã de uma vida eterna após a morte).
A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES MORAIS
Nietzsche criticou os valores morais e, em seguida, apontou uma solução: um passo a passo que se inicia na genealogia dos valores morais e passa pela transvaloração. A transvaloração não é uma atividade isolada e não se encerra em si mesma. É um processo contínuo que deve ser praticado ininterruptamente, visando sempre o fortalecimento do ser humano.
Transvalorar, segundo o filósofo, é, em suma, analisar os valores morais tendo em vista a manutenção daquilo que pode ser benéfico ao ser humano e a troca daqueles valores prejudiciais. Essa seria uma forma possível e viável de se estabelecer uma valoração moral capaz de fortalecer novamente o ser humano e torná-lo capaz de explorar a plenitude de sua potência.
NIILISMO
O legado da obra de Nietzsche foi e continua sendo ainda hoje de difícil e contraditória compreensão. Assim, há os que, ainda hoje, associam suas ideias ao niilismo, defendendo que para Nietzsche:
"A moral não tem importância e os valores morais não têm qualquer validade, só são úteis ou inúteis consoante a situação"; "A verdade não tem importância; verdades indubitáveis, objetivas e eternas não são reconhecíveis. A verdade é sempre subjectiva"; "Deus está morto: não existe qualquer instância superior, eterna. O Homem depende apenas de si mesmo"; "O eterno retorno do mesmo: A história não é finalista, não há progresso nem objetivo". Ou ainda "...se existem deuses, como poderia eu suportar não ser um deus!? Por conseguinte não há deus." passagem que deixa evidente que a conclusão não decorre da premissa, mas sim da pessoal inaceitação do autor a um ente superior ao que ele próprio poderia conceber, ou seja: que, no mínimo, o autor é o ser de maior capacidade intelectiva que existe - isto portanto não o caracteriza como niilista. A superação do homem do seu tempo é o eixo de sua filosofia.
Outros autores, entretanto, não pensam que Nietzsche seja um autor do niilismo, mas ao contrário um crítico do niilismo. Na genealogia da moral o filósofo faz críticas abertas ao niilismo, que para ele seria uma "anseio do vazio", uma manifestação dos seres doentes aonde se conformam e idealizam o vazio e não um verdadeiro estado de força. Além disso, para ele o homem pode ser, além de um destruidor, um criador de valores. E os valores a serem destruídos, como os cristãos (na sua obra, faz menção à doença, à ignorância), um dia seriam substituídos pela saúde, a inteligência, entre outros. Tal afirmação se baseia na obra Assim falou Zaratustra, onde se faz clara a vinda do Além-homem, sendo criar a finalidade do ser. Tal correspondência é totalmente contrária ao niilismo, pelo menos em princípio. Ou um "niilismo positivo", para Heidegger. Todavia, Nietzsche, contrário ou não, não deixando escapar de suas críticas nem mesmo seu mestre Schopenhauer nem seu grande amigo Wagner, procurou denunciar todas as formas de renúncia da existência e da vontade. É esta a concepção fundamental de sua obra Zaratustra, "a eterna, suprema afirmação e confirmação da vida". O eterno retorno significa o trágico-dionisíaco dizer sim à vida, em sua plenitude e globalidade. É a afirmação incondicional da existência.
Talvez a falta de consenso na apreciação da obra de Nietzsche tenha em parte a ver com os paradoxos no pensamento do próprio autor. As suas últimas obras, sobretudo o seu autobiográfico Ecce Homo (1888), foram escritas em meio à sua crise que se aprofundava. Em Janeiro de 1889, Nietzsche sofreu em Turim um colapso nervoso. Nietzsche passou os últimos 11 anos da sua vida sob observação psiquiátrica, inicialmente num manicômio em Jena, depois em casa de sua mãe em Naumburg e finalmente na casa chamada Villa Silberblick em Weimar, onde, após a morte de sua mãe, foi cuidado por sua irmã.
OBRAS
O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, 1872); reeditado em 1886 com o título O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie, Oder: Griechentum und Pessimismus) e com um prefácio autocrítico. — Contra a concepção dos séculos XVIII e XIX, que tomavam a cultura grega como epítome da simplicidade, da calma e da serena racionalidade, Nietzsche, então influenciado pelo romantismo, interpreta a cultura clássica grega como um embate de impulsos contrários: o dionisíaco, ligado à exacerbação dos sentidos, à embriaguez extática e mística e à supremacia amoral dos instintos, cuja figura é Dionísio, deus do vinho, da dança e da música, e o apolíneo, face ligada à perfeição, à medida das formas e das ações, à palavra e ao pensamento humanos (logos), representada pelo deus Apolo. Segundo Nietzsche, a vitalidade da cultura e do homem grego, atestadas pelo surgimento da tragédia, deveu-se ao desenvolvimento de ambas as forças, e o adoecimento da mesma sobreveio ao advento do homem racional, cuja marca é a figura de Sócrates, que pôs fim à afirmação do homem trágico e desencaminhou a cultura ocidental, que acabou vítima do cristianismo durante séculos.
A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen - provavelmente os textos que o compõem remontam a 1873 - publicado postumamente). Trata-se de um livro deixado incompleto, mas que se sabe ter sido intenção de Nietzsche publicar. Trata-se, no fundo, de um escrito ainda filológico mas já de matriz filosófica disfarçada por uma pretensa intenção histórica; mas o grande diferencial desta obra, sua inovação, consiste em sua interpretação psicológica dos pensadores originários. Considera os casos gregos de Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides e Anaxágoras sob uma perspectiva inovadora e interpretativa, relevadora da filosofia que é de Nietzsche.
Sobre a Verdade e Mentiras em um Sentido Não-Moral (Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn, 1873 - publicado postumamente; edição brasileira, 2008). — Ensaio no qual afirma que aquilo que consideramos verdade é mera "armadura de metáforas, metonímias e antropomorfismos". Apesar de póstumo é considerado por estudiosos como elemento-chave de seu pensamento.
Considerações Extemporâneas ou Considerações Intempestivas (Unzeitgemässe Betrachtungen, 1873 a 1876). — Série de quatro artigos (dos treze planejados) que criticam a cultura européia e alemã da época de um ponto de vista antimoderno, e anti-histórico, de crítica à modernidade.
David Strauss, o Confessor e o Escritor (David Strauss, der Bekenner und der Schriftsteller, 1873) no qual, ao atacar a ideia proposta por David Friedrich Strauss de uma "nova fé" baseada no desvendamento científico do mundo, afirma que o princípio da vida é mais importante que o do conhecimento, que a busca de conhecimento (posteriormente discutida no conceito de "vontade de verdade") deve servir aos interesses da vida;
Dos Usos e Desvantagens da História Para a Vida (Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, 1874);
Schopenhauer como Educador (Schopenhauer als Erzieher, 1874);
Richard Wagner em Bayreuth (Richard Wagner in Bayreuth, 1876).
Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres (Menschliches, Allzumenschliches, Ein Buch für freie Geister, versão final publicada em 1886); primeira parte originalmente publicada em 1878, complementada com Opiniões e Máximas (Vermischte Meinungen und Sprüche, 1879) e com O Andarilho e sua Sombra ou O Viajante e sua Sombra (Der Wanderer und sein Schatten, 1880). — Primeiro de estilo aforismático do autor.
Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais (Morgenröte. Gedanken über die moralischen Vorurteile, 1881). — A compreensão hedonística das razões da ação humana e da moral são aqui substituídas, pela primeira vez, pela ideia de poder, sensação de poder, início das reflexões sobre a vontade de poder, que só seriam explicitadas em Assim Falou Zaratustra.
A Gaia Ciência, traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882). — No terceiro capítulo deste livro é lançada o famoso diagnóstico nietzschiano: "Deus está morto. Deus continua morto. E fomos nós que o matamos", proferido pelo Homem Louco em meio aos mercadores ímpios (§125). No penúltimo parágrafo surge a ideia de eterno retorno. E no último, aparece Zaratustra, o criador da moral corporificada do Bem e do Mal que, como personagem na obra posterior, finalmente superará sua própria criação e anunciará o advento de um novo homem, um Além-Homem.
Assim Falou Zaratustra, um Livro para Todos e para Ninguém (Also Sprach Zarathustra, Ein Buch für Alle und Keinen, 1883-85). Nessa trama centrada na figura do sábio solitário Zarathustra, o conceito do super-Homem surge necessário quando o homem já não mais se identifica com os seus semelhantes, com os demais homens. A necessidade da superação, reafirmando os valores imutáveis da natureza (como a força vital, o amor e o devir) tornam-se indispensáveis para que não se perca a própria identidade em meio ao caos do mundo, mesmo que isso não seja aceito ou bem interpretado pela sociedade .
Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886). Neste livro denso são expostos os conceitos de vontade de poder, a natureza da realidade considerada de dentro dela mesma, sem apelar a ilusórias instâncias transcendentes, perspectivismo e outras noções importantes do pensador. Critica demolidoramente as filosofias metafísicas em todas as suas formas, e fala da criação de valores como prerrogativa nobre que deve ser posta em prática por uma nova espécie de filósofos.
Genealogia da Moral, uma Polêmica (Zur Genealogie der Moral, Eine Streitschrift, 1887). Complementar ao anterior — como que sua parte prática, aplicada — este livro desvenda o surgimento e o real significado de nossos corriqueiros juízos de valor.
O Crepúsculo dos Ídolos, ou como Filosofar com o Martelo (Götzen-Dämmerung, oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, agosto-setembro 1888). Obra onde dilacera as crenças, os ídolos (ideais ou autores do cânone filosófico), e analisa toda a gênese da culpa no ser humano.
O Caso Wagner, um Problema para Músicos (Der Fall Wagner, Ein Musikanten-Problem, maio-agosto 1888).
O Anticristo - Praga contra o Cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum, setembro 1888) - Apesar de apontar Cristo, mesmo em sua concepção "própria", como sintoma de uma decadência análoga à que possibilitou o surgimento do Budismo, nesta obra Nietzsche dirige suas críticas mais agudas a Paulo de Tarso, o codificador do cristianismo e fundador da Igreja. Acusa-o de deturpar o ensinamento de seu mestre — pregador da salvação no agora deste mundo, realizada nele mesmo e não em promessas de um Além — forjando o mundo de Deus como a cima e além deste mundo. "O único cristão morreu na cruz", como diz no livro que seria o início de uma obra maior a que deu sucessivamente os títulos de Vontade de Poder e Transmutação de Todos os Valores: uma grande composição sinótica da qual restam apenas meras peças (O Anticristo, O Crepúsculo dos Ídolos e o Nietzsche contra Wagner) não menos brilhantes que a restante obra.
Ecce Homo, de como a gente se torna o que a gente é (Ecce Homo, Wie man wird, was man ist, outubro-novembro 1888) — Uma autobi(bli)ografia, onde Nietzsche, ciente de sua importância e acometido por delírios de grandeza, acha necessário, antes de expor ao mundo a sua obra definitiva (jamais concluída), dizer quem ele é, por que escreve o que escreve e por que "é um destino". Comenta as suas obras então publicadas. Oferece uma consideração sobre o significado de Zaratustra. E por fim, dizendo saber o que o espera, anuncia o apocalipse: "Conheço minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo — de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. (… ) Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão que público este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo. (… ) Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremoto, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra de espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares — todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra."
Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner, Aktenstücke eines Psychologen, dezembro 1888).
Nota:
1 NIETZSCHE, F. O Anticristo e ditirambos de Dionísio. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 51.
PORFÍRIO, Francisco. "Crítica de Nietzsche à moral cristã"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/critica-nietzsche-moral-crista.htm. Acesso em 23 de novembro de 2020.